quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

"A oferta do destino

Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me:

- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha… Caminha sempre, sem descanso, nem fadiga, vai sempre avante não te detenhas, não pares nunca!... A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis. Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!

Isto disse-me um dia o destino trôpego velho de cabelos cor de neve.

Calcei os sapatos e caminhei. O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas os rouxinóis… Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam as rochas, vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz do imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tornam-se cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!

E os sapatos inda se não romperam!

Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!...”

Espanca, Florbela, (2000), Contos e Diário, Publicações Dom Quixote, p. 23-24

1 comentário:

Anónimo disse...

Palavras pra quê?!

Esta Florbela dá cabo de mim... Desarma-me!

:)

Beijo*