domingo, 5 de novembro de 2006

O silêncio e todas as coisas

"Se pudesse vivia toda a minha vida ao entardecer.
O tempo breve em que o silêncio e todas as coisas me falam de Deus.

Amo o silêncio. Amo a ausência de vozes, de barulhos excessivos e do ruído de todos os dias. Amo a quietude das coisas, o som do vento, o rumor vegetal das árvores, o fim de tarde, o vagar do mar, o torpor do poente. Amo o tempo e as coisas de Deus, por serem tão simples e tão perfeitos.

Do imenso terraço onde não chegam vozes e o silêncio se entende sobre todas as coisas, vê-se o infinito. Um mundo de luz e sombras que se desvanece até ninguém poder dizer onde acaba a terra e começa o céu.

Em frente da casa há um campo de milho crescido, ainda verde, onde o vento corre manso e morno. Atrás há uma vinha alta, a perder de vista, onde a terra tem o cheiro ácido das uvas por amadurecer. Entre a vinha e os campos de terra cultivada existem caminhos de sombras com plátanos majestosos, castanheiros antigos e buganvílias cheias de flor. Às vezes ouvem-se os passos das pessoas que caminham devagar sobre as folhas caídas mas nada perturba o silêncio ou suspende a respiração da terra.

A casa é muito grande, de granito, com paredes de cal imaculada e muros sem arestas em cima, curvos e perfeitos. No centro da casa há um claustro grande, onde a pedra do chão está gasta e ressoam ainda passos antigos. Este grande claustro torna a casa mais solene e fresca mas não a faz fria. É uma casa habitada por pessoas que procuram o silêncio e a presença destas pessoas de quem não conhecemos a voz mas, apenas, os passos, o sorriso e alguns gestos, é infinitamente luminosa e inspiradora.

Às horas certas, a casa fica inundada do cheiro quente e temperado que emana da grande cozinha e é, então, que alguém escolhe a música que ouvimos durante o tempo em que ficamos sentados à volta da mesa. A música substitui o silêncio mas não apaga o mistério e muito menos perturba a paz pois o segredo do silêncio está em poder ouvir a voz interior. Em permanecer atento ao essencial. Em ter tempo para olhar e ver.

Ao entardecer chega o jardineiro e, sem fazer barulho, ajoelha na terra e debruça-se sobre as flores que plantou à volta do lago dos peixes encarnados. Trata das suas rosas com gestos sagrados, arranca as ervas que impedem as violetas de crescer e alisa as suas pétalas delicadas com a ponta dos dedos. E faz tudo com uma devoção tão funda que os seus modos apaixonados, demorados, prendem a atenção. Comove ver um homem assim ajoelhado sobre um pedaço de terra.

A noite cai, o dia declina e a luz da ponte transforma as coias, Ao longe, uma nuvem de poeira dourada levanta-se da terra e permanece suspensa, coada pela luz amarela do sol do fim da tarde. É a hora em que os mosquitos voam mais baixo, à procura da sombra e da água e formam, também eles, nuvens agitadas e sem consistência.

Tudo muda ao entardecer. A cor dos telhados, o branco da cal, o verde das folhas, o azul líquido dos dois rios que se encontram debaixo da mesma ponte, a transparência púrpura do céu, tudo muda e parece facar ardente. Se pudesse vivia toda a minha vida entardecer. O tempo breve em que o silêncio e todas as coisas me falam de Deus."

Laurinda Alves

1 comentário:

Anónimo disse...

Gsto tanto deste texto da Laurinda ! :)

Outra q tal... maravilhosa!

E o Pin com a penugem ao pescoço.. dá outro toque á coisa! eheh x)

Beijinho*